Disciplina:
Tendências contemporâneas do Currículo
Educação em direitos
humanos: políticas curriculares
Autora: Vera Maria Candau
Professora da PUC-Rio de Janeiro
As reflexões sobre políticas curriculares mostram-se intensificadas nos
últimos anos, no entanto, a problemática dos direitos humanos, assim como sua
incidência no cotidiano escolar não tem sido abordada e trabalhada de forma
mais ampla, diferente de outros países latino-americanos.
No Chile,
estudioso na área de currículo e de educação em direitos humanos,Magendzo cita a constante presença desta relação, a
qual se mostra de forma complexa e que se intensificou frente as reformas curriculares
atuais. Para a análise desta relação, há que se abandonar uma postura ingênua e
considerar um campo problemático, de tensões e conflito.
Para tanto, deve-se desvelar as
contradições, o que requer humildade
para reconhecer o inicio de uma longa trajetória.
Desta forma, nas relações entre políticas de currículo e direitos
humanos, perceberemos que estamos
navegando em águas pouco trilhadas por nós, o que requer considerações sobre questões fundamentais
para efetivarmos tal contextualização, o que representa o objetivo do texto.
Questões como: Tem sentido hoje o discurso sobre os direitos humanos?
Por que educar em direitos humanos? O que é educar em direitos humanos?
Tem
sentido hoje o discurso sobre os direitos humanos?
Deve-se considerar a relevância do
discurso sobre direitos humanos no momento atual nas esferas: mundial,
continental e federal.
Internacionalmente, são
múltiplas e diversas as violações dos direitos humanos
e desrespeito ás normas internacionais relativas à proteção e defesa da
dignidade humana.
As políticas neoliberais e a
globalização são realidades que acentuam a exclusão, porém não afetam
igualmente todos os grupos sociais e culturais, nem todos os países em nem
todas as regiões do país. Nesta
sociedade, marcada pela competitividade, os considerados diferentes, os
“perdedores” presenciam, a cada dia, a negação do “ direito a ter direitos.” (((Paulo Freire: A verdade do opressor reside
na consciência do oprimido))))))
Nacionalmente,observa-se a
vivencia de um quadro sombrio tanto social quanto político. Caracteriza-se pela
desigualdade e exclusão econômica,
social, racial e cultural, decorrentes de um modelo de Estado neoliberal, no
qual as política públicas priorizam os direitos civis e políticos em detrimento
dos direitos, econômicos, sociais e coletivos.
Cria-se uma situação contraditória entre a proclamação contínua dos
direitos humanos e a experiência cotidiana de cada um, o que gera a afirmação,
por parte de muitos, de que os direitos humanos constituem um discurso vazio e
retórico.
Apesar do panorama desolador pode-se
detectar progressivamente a afirmação de uma nova
sensibilidade social, ética,
política e cultural, na qual, através do Fórum Social
Mundial aglutinam-se sujeitos
individuais e coletivos, organizações , militantes , constituindo redes que clamam por
gestos e ações concretas quanto a
possibilidade de um outro mundo.
Por
que educar em direitos humanos?
Há que se avaliar a possibilidade e o sentido de educar em e para os
direitos humanos.
Primeiramente, entender que os direitos humanos não são “naturais”, são
conquista históricas que remetem á uma progressiva tomada de consciência do
significado de ser humano.
Conforme citação na ONU, em 2005, na Declaração e Programa de Ação de
Viena: A Conferencia mundial em de Direitos Humanos considera: a educação, a
capacitação e informação pública em matéria de direitos humanos são
indispensáveis para estabelecer e promover relações estáveis e harmoniosas
entre as comunidades e para fomentar a compreensão mútua, a tolerância e a
paz.”
A atualidade mostra um retrocesso, na medida em que seres humanos são considerados descartáveis. Vê-se
então a importância da conscientização da dignidade
humana e promoção de uma cultura de direitos humanos.
Outro aspecto importante é a relação entre a educação
como direito humano e a educação em
direitos humanos. Considera-se a educação em direitos humanos como uma parte
integrante do direito à educação. O Comitê dos direitos das crianças enfatiza
que a educação a que uma criança tem direito é a que tem por objeto
prepará-la para a vida cotidiana,
capacitá-la pra desfrutar os direitos humanos e fomentar uma cultura em que
prevaleçam valores de direitos humanos apropriados.
A fundamentação da importância da educação em
direitos humanos também se refere ao fato desta ser indispensável para a
efetivação de todos os direitos humanos em nossa
sociedade.
Conforme cita Fritzche, professor de ciência política, “ Para que serve ter direitos humanos se não os conhecemos que para que conhecê-los se não os compreendemos?”
E ainda questiona: “ Para que serve compreendê-los se ninguém está preparado para respeitá-los e
promovê-los?”
Ainda, um último motivo para se educar
em direitos humanos: íntima relação entre democracia, cidadania e direitos
humanos. A educação ganha maior importância quando direcionada ao pleno
desenvolvimento humano e às suas potencialidades, elevação da auto-estima dos
grupos sociais excluídos, efetivando assim a plena cidadania.
Desta forma, a autora propõe a construção de uma cultura dos direitos
humanos que penetre os diferentes espaços da vida social, desde a família às
estruturas e políticas do Estado.
O
que é educar em direitos humanos?
A definição de educação em direitos humanos não é ainda clara.
Em 2002, uma tentativa foi esboçada neste sentido, por Shulamith
Koenig,através de um entusiasmado debate entre mais de 3000 educadores para os
direitos humanos ao redor do mundo, sem entretanto emergir uma definição de
consenso.
No continente latino-americano, Abraham Magendzo coordena o Instituto
Interamericano de direitos humanos( IIDH), da Costa Rica, no período de
1999-2000, o que promove a construção de
referenciais a partir de uma ampla pesquisa.Nesta, é feito um balanço crítico
da educação em direitos humanos na América Latina através da participação de um
pesquisador de cada país para se realizar um estudo de caso em seu respectivo
contexto.
Participaram: Argentina, Chile, Peru, Brasil, Colombia, Guatemala e
México. Após a realização dos estudos de
caso nacionais, convocou-se um seminário em Lima em 1999 que teve como objetivo
discutir e elaborar uma síntese final do processo, além de levantar questões
para o desenvolvimento da educação em direitos humanos em 2000.
Principais temas discutidos:
1-Contextualizar o sentido da educação em direitos humanos com o novo
marco político, social, econômico e cultural. As políticas neoliberais, a
debilidade da sociedade civil, a crescente exclusão social e a falta de
horizonte utópico para a construção social. Observa-se nesta última década, diferente
dos anos 80, a entrada dos Estados Unidos, devendo-se debater então, questões
relativas ao sentido da educação em direitos humanos e os objetivos que se pretende alcançar.
2- Importante evitar que a polissemia das expressões utilizadas causem ambiguidade ou restrinjam a educação em direitos humanos a uma educação em valores, inibindo seu
caráter político. O fato de se “alargar” a expressão pode causar a perda da
especificidade, reduzindo-a a um grande “chapéu”, sob o qual se coloca as mais
variadas coisas.
Ao final do seminário constatou-se a necessidade de se reforçar 3
dimensões:
Formação de sujeitos de direito: tem-se uma consciência débil e se pensa o
direito com “ dádivas”.Deve-se favorecer processos de formação de sujeitos de
direito ( pessoal e coletivo) com articulação ética, política e social e
práticas concretas.
Favorecer o processo de “ empoderamento”:
permitir que a pessoa seja o sujeito de sua vida e ator social. Também há a aplicação coletiva
( grupos sociais, minorias) através da qual se favorece a organização e
participação civil ativa.
Necessidade de processos de transformação para a
construção de sociedades humanas e democráticas. “ Educar para o nunca mais”:
resgatando a memória histórica,rompendo a cultura do silêncio e da impunidade
para que se construa a identidade de um povo.
Esses 3 componentes constituem o
horizonte de sentido da educação em direitos humanos.
Para isso, são necessárias estratégias metodológicas coerentes com as finalidades
expostas. Requer metodologias ativas, participativas e com diferentes
linguagens.
É fundamental que se tenha como
referência a realidade e o trabalho com diferentes dimensões dos processos
educativos e do cotidiano escolar, além de se considerar a abordagem específica
em contextos específicos.
Há que se transformar
mentalidades, atitudes, dinâmicas organizacionais, práticas e comportamentos
cotidianos.
A dificuldade existe em promover processos de formação que
trabalhem profundidade e que favoreçam a constituição de sujeitos e atores
sociais pessoal e coletivamente.
Considerando a
educação escolar, são assinalados elementos capazes de ajudar a caracterizar experiências que
podem ou não ser consideradas educação em direitos humanos:
O que não
é educação em direitos humanos:
ü
atividades esporádicas não integradas entre si;
ü
apenas campanhas episódicas;
ü
conteúdo de algumas disciplinas ou uma
disciplina pontual;
ü
formação em valores, simplesmente;
ü
conhecimento da Declaração Universal dos
Direitos Humanos, por exemplo, como única forma de respeito a estes direitos.
O que é
educação em direitos humanos:
ü
processo dinâmico, sistemático, multidimensional
que forme indivíduos conscientes dos seus direitos e deveres, e que os faça
cidadãos participantes;
ü
atividades, atitudes, saberes e práticas que
construam uma sólida cultura de direitos humanos na escola e na sociedade;
ü
desenvolvimento da consciência da dignidade em
cada indivíduo;
ü
processos onde estejam presentes, segundo Sime,
as pedagogias da indignação, da admiração e das convicções firmes;
ü
promoção do trabalho coletivo, do incremento da
auto-estima, e o desenvolvimento do conceito de importância social dos
excluídos.
Educar em direitos
humanos no âmbito escolar: principais desafios
A ONU (2002) define como educação em direitos humanos:
“conjunto de atividades de capacitação e difusão de informações orientadas para
criar uma cultura universal na esfera dos direitos humanos mediante a
transmissão de conhecimento, o ensino de técnicas e a formação de atitudes”.
Com esta tarefa em vista, quais são os desafios?
1.
desconstruir a visão do senso comum de que
defender os direitos humanos é apenas defender bandidos. Trata-se de lutar pela
defesa da dignidade de todas as pessoas e do estado de direito da sociedade, e
aí se incluem “os bandidos”, ou mergulharíamos de novo na barbárie.
2.
optar entre diferentes concepções de educação em
direitos humanos: dois enfoques principais se evidenciam, o neoliberal e o
dialético.
A visão neoliberal tende a ver o respeito
aos direitos humanos como determinante da melhoria da sociedade, sem entretanto
questionar o seu modelo; enfatiza os direitos individuais, a ética, os direitos
civis e políticos (centrados no processo eleitoral). Formar cidadãos é formar
indivíduos produtores e indivíduos consumidores, e isto se faz nas escolas
dentro de uma visão construtivista e transversal, privilegiando as dimensões
psicoafetivas, interacionista e experiencial.
A visão dialética e contra-hegemônica diz
que os direitos humanos devem ser mediações para a construção de uma sociedade
inclusiva, auto-sustentável e plural. Propõe uma cidadania coletiva,
organizada, apóia a transformação social e defende a inclusão, com poder, dos
marginalizados. Diz que os direitos políticos não devem ser garantidos apenas
pelo processo eleitoral, passível de manipulação, propõe discussões a respeito
dos direitos associados à revolução tecnológica e à globalização. Na escola,
privilegia a interdisciplinaridade, admite as dimensões sócio-cultural,
afetiva, experiencial como entende a pedagogia crítica e segue o construtivismo
sociocultural.
As duas perspectivas freqüentemente se
cruzam, mas é importante ter uma delas como referencial principal.
3.
preservar o direito à diferença: há
controvérsias a respeito do privilégio ou da igualdade, ou das diferenças;
entretanto, aconselhável é fazer dialogarem ambas as posições. Na verdade,
igualdade não é oposta a diferença, e sim a desigualdade... Diferença se opõe a
padronização e não a igualdade... Então, o que se pretende aqui é abominar a
padronização ao mesmo tempo que lutar contra a desigualdade na sociedade, ou
seja, lutar pela igualdade e pelo respeito à diferença, ao mesmo tempo.
4.
construir ambientes escolares que respeitam e
promovem os direitos humanos: não se pode reduzir a educação em direitos
humanos a alguns conteúdos esparsos no currículo escolar. É preciso criar um
ambiente de direitos humanos respeitados, em todos os momentos e todas as
situações cotidianas, e por todas as pessoas. O Programa Mundial para a Educação
em Direitos Humanos da ONU (2005) diz que esta deve incluir duas dimensões: o
contexto educativo e as ações eficazes que garantam o respeito aos direitos
humanos. Isto pede estratégias amplas, que saem do domínio da escola e englobam
o Poder Público e a sociedade.
5.
incorporar a educação em direitos humanos no
currículo escolar: para as escolas fundamental e média existe o consenso de que
não se deve introduzir o conteúdo através de uma disciplina específica, mas sim
fazê-lo permear todas as estratégias de ensino, sejam disciplinas, sejam
projetos específicos.
6.
introduzir o conteúdo desejado na formação
inicial e continuada de educadores: as ações neste sentido são mínimas,
infelizmente. Não se pode, no entanto, imaginar que educadores transmitam
valores não vividos continuamente por eles mesmos.
7.
estimular a produção de material de apoio: ainda
são poucos e precários estes recursos, e é preciso que este cenário mude.
Em resumo, vê-se que é urgente a construção de uma cultura
social de respeito aos direitos humanos e o diálogo contínuo entre
escola-sociedade, para que possamos dar conta do longo caminho que há a
percorrer.
Reflexão: analisar o
Índice de Felicidade Interna Bruta, enfatizando a sua proposta de construção de
uma cultura (expressa pelo índice FIB) que transcende os valores capitalistas
sem entretanto negá-los.
Porangaba SP