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terça-feira, 24 de abril de 2012

A seleção cultural do currículo


A Seleção Cultural do Currículo – J. Gimeno Sacristán

Na concepção atual de escola, currículo é muito mais do que apenas conteúdo especializado desta ou daquela área do saber, mas trata da função socializadora que já foi atributo exclusivo da família.

A escolarização ocorre cada vez mais precocemente na vida das pessoas, e a família (hoje menor, muitas vezes desagregada)então se recolhe a uma menor função educativa no que se refere a valores éticos e morais e ao compartilhamento de experiências construtoras de caráter.

Três razões principais apoiam o conceito de que a aprendizagem escolar e o currículo se tornam cada vez mais complexos:

a escola assume funções que outrora eram posse de outras instituições educativas como a família, como a igreja ou as agremiações sociais, por exemplo. Soma-se o fato de que a escolarização se inicia cada vez mais cedo e se prolonga cada vez mais;

a própria expectativa de que o aluno, ao sair da escola esteja "pronto prá vida" faz com que a escola extrapole, ao ensinar, o conteúdo formal e se esforce por transmitir valores e a fomentar a cultura desejável para aquela dada comunidade;

a pedagogia moderna tem insistido na pertinência de se acolher e desenvolver as necessidades globais do indivíduo em formação.

Assim, currículo passa a ser tudo aquilo que se transfere ao aluno dentro dos limites da escola, muito mais do que os conteúdos formais das "matérias" do passado. Quando se pensa que um grande número de cidadãos tem na escola a única oportunidade de ter contato com alternativas culturais aos seus próprios valores (a nossa juventude lê cada vez menos, por exemplo), o que ensinar nas escolas torna-se crucial para o futuro do país. Esta necessidade que a escola hoje tem que satisfazer, coloca a questão de o que inserir no currículo oficial e obrigatório, que represente a cultura local. Currículo passa a ser "um mapa representativo da cultura".

Lawton preconiza que, para tal, oito parâmetros devem ser contemplados:

a estrutura e o sistema social;

o sistema econômico;

os sistemas de comunicação;

a racionalidade;

a tecnologia;

o sistema moral;

o conhecimento;

a estética.

Skilbeck sugere nove áreas para a composição do núcleo básico de um currículo assim entendido:

artes e ofícios;

meio ambiente;

habilidades e raciocínio matemático;

estudos sociais, cívicos e culturais;

educação para a saúde;

ciência e tecnologia;

comunicação;

moral;

 

mundo do trabalho.

Normatizar os assuntos importantes, porém, não é fácil; não há consenso dentro de um mesmo grupo social. Algumas áreas do saber parecem ter continuidade dentro do caminho oficial do aprendizado, outras nem tanto; alguns assuntos parecem ser mais importantes do que outros, embora menos atraentes (
na Medicina, por exemplo, tudo o que se refere ao estudo da doença e à cura é dado como mais importante do que a prevenção desta mesma doença, ou do que o estudo da fase em que a cura da doença não mais pode ocorrer...). Por outro lado, normatizar um currículo significa nivelar todos os conteúdos culturais dos alunos e exigir de todos os que apenas alguns podem realizar.

O currículo não é um nivelador social, embora alunos menos favorecidos socialmente tendam a ver no currículo acadêmico uma oportunidade de ascensão social, mais do que vêm nos cursos profissionalizantes ou nos que ensinam habilidades manuais. Aliás, o currículo obrigatório foi calcado no saber e nas expectativas das classes média e alta (ver educação de minorias)e nem sempre as classes C, D e E alcançam os seus objetivos. Na escola primária parece haver consenso sobre o que é desejável em educação; à medida que a escolaridade progride este consenso se esfumaça.

Em todo caso, sempre vai haver desigualdades no aprendizado, que podem ser abordadas de formas inclusivas:

aulas de reforço, oferta de auxílio da psicopedagogia;

proposição de módulos mais teóricos ao lado de outros mais tecnológicos ou mesmo mais manuais;

mudanças na metodologia, fazendo-a mais atrativa para alunos diferentes...

Vale a pena pensar a educação para um mercado que exige polivalência, adaptabilidade, rapidez na mudança de paradigmas...

De qualquer forma, no mundo ocidental se observa uma tendência à volta à educação tradicional, mais centralizada, ao privilégio do ensino das ciências e da tecnologia.

A instituição escolar assimila lentamente as finalidades propostas pelo currículo ampliada, o que produz algumas contradições quanto ao seu funcionamento na própria instituição ao propor atividades justapostas a outras já dominantes. Observa-se a abertura de brechas sem relação com o ensino das áreas ou disciplinas distribuídas de forma mais tradicional, supondo uma recuperação do "novo" dentro do velho molde.

A evolução da cultura e da sociedade atual revelam uma peculiaridade decisiva em termos de projeções no conteúdo e no método da cultura distribuída nos currículos escolares: possibilidade de ser transmitida através dos mais diversos canais de comunicação cultural (através de revistas, fascículos, museus,viagens) á margem dos canais escolares. Lamentavelmente, observa-se uma dissociação entre aprendizagem escolar e aprendizagem experimental extra-escolar, associada á própria seleção de conteúdos dentro do currículo e à ritualização de processos escolares. Tal fato se agrava à medida em que o estímulo cultural fora da instituição é cada vez mais amplo, atraente e penetrante. No entanto, faz-se necessário analisar até que ponto os canais extra-escolares servem para libertar o indivíduo,tornando-o crítico ou para torná-lo alienado e consumista.

No campo científico e tecnológico, a divulgação do conhecimento pelos maios variados sistemas é um instrumento de controle democrático nas sociedades modernas. A conscientização ecológica, a luta contra a militarização da ciência e a investigação expressa por

distintos movimentos sociais são consequências de uma democratização do saber científico que advertem contra determinados usos do mesmo.

É evidente o predomínio de informação dos novos meios sobre os currículos, especialmente televisão e vídeo são fontes de conhecimento mais atrativos e eficazes do que livros escolares e professores que insistem em preconizar a aprendizagem das funções mais do que as próprias funções.

É importante observar que o currículo como veículo de cultura geral há de ser relativizado frente à concorrência exterior, principalmente à medida em que não se adota o currículo como instrumento de política cultural ou que se pense de forma coordenada a política cultural para a escola e para a sociedade em geral. Deve-se considerar a desvalorização da própria instituição frente o surgimento de novos recursos e técnicas de comunicação cultural na sociedade. A escola tem seu poder com agente cultural alterado, incluindo a alteração do próprio valor das funções da escolarização, que torna mais evidente as funções de seu currículo oculto: "guardar" a infância e a juventude, socializá-la em certos valores, etc.

Isso nos leva a pensar a instituição escolar e seu currículo em um nicho cultural mais amplo que afeta o aluno devendo exigir transformação substancial da instituição escolar. Como os estímulos culturais têm muitos canais, pode-se criar disfunções na instituição escolar, mais evidentes em momentos históricos, o que requer a observação de novas perspectivas na concepção e forma de currículo.

A mudança dos currículos deveria considerar essa situação atual, aproveitando os meios de que hoje se dispõe. No entanto, a escola, como possível meio de nivelação social perde essa possibilidade frente á nova concorrência cultural exterior.

As disfunções se tornam mais evidentes para as classes médias e altas e nos ambientes urbanos, que têm acesso mais fácil á cultura exterior, ao mesmo tempo que devem seguir imersas nos velhos usos culturais da escola, o que repercute em pressão cada vez maior sobre a escola e sobre horários cada vez mais sobrecarregados de atividades complementares.

Faz-se presente então uma escolarização paralela, fora das aulas, às vezes necessárias para complementar o currículo escolar, o que repercute numa insatisfação crescente quanto ao currículo escolar, exemplos de situações: idiomas,formação musical, informática, expressão plástica .

Essa dissociação deixa a cultura do currículo escolar cada vez mais obsoleta, o que tem consequências distintas para diferentes grupos de alunos. Para os alunos que precedem de níveis culturais mais baixos ocorre uma carência de significado desta cultura em sua vida, o que acarreta em abandono, desmotivação, fracasso escolar e rebeldia. Para a classe média, busca-se suprir através de fora as carências da instituição escolar, o que mantém a dissociação, com chance ainda de sobrevivência neste contexto.

De qualquer forma, o currículo ainda é a fonte de validação acadêmica e profissional na sociedade. Frente a essa concorrência, o currículo escolar perde o monopólio de transmissão de valores culturais explícitos, mas reforça outras funções do currículo oculto( socialização, valores sociais, etc).

De acordo com Apple ( 1986,p.70), o currículo oculto que hoje denominamos como tal, foi o currículo explícito da história da escola. Hoje, nota-se o valor do currículo oculto como delator de uma educação encoberta, em reação à visão da escola como uma instituição generosa, igualadora para participar na vida social e econômica.

Dewey (1967, p.28 e ss.) faz uma colocação ainda válida ao se referir à missão da instituição escolar, no sentido de prover um ambiente:

a) Simplificado e (b) Ordenado progressivamente para que possibilite melhor compreensão do ambiente exterior (c) Compensatório ou libertador das limitações de cada aluno e (d) coordenador das influencias que os indivíduos recebem.

Desta forma, a escola tem diversos desafios a enfrentar, além de se conectar melhor com a cultura exterior e ainda manter-se coerente com a política cultural geral. Atribuir essa carga para o professorado é lhe pedir muito.

Deve ter cuidado neste campo, pois o instrumento cultural deve se fazer presente. Não são adequados modelos de educação que fogem dos conteúdos para se justificar nos processos.

Os códigos ou formato do Currículo.

Os conteúdos dos currículos foram planejados para formar de fato um currículo escolar, o que lhe atribui um determinado formato, com consequência da tecnificação pedagógica de que tem sido objeto.

Conteúdos, códigos e práticas são componentes essenciais dos currículos, atuando explicita ou implicitamente.

Os códigos dão forma "pedagógica" aos conteúdos, que ao atuarem sobre alunos e professores moldam a prática.

Pode-se dizer que os conteúdos são destinados aos alunos e as formas curriculares afetam muito diretamente os professores.

Segundo Lundgren (1983, p. 13), por trás de cada currículo existe uma série de princípios que ordenam a seleção, organização e métodos de transmissão. Códigos são considerados como qualquer elemento ou ideia que intervém na seleção, ordenação, sequencia e provêm de opções políticas, sociais, psicológicas, pedagógicas, organizativas ( ordenar o ensino por ciclos ou por cursos).

O código da Especialização do currículo

A organização dos diversos elementos que compõem o currículo tem importantes repercussões. Por exemplo, o currículo agrupado em cadeiras ( secundário) é diferente do agrupado em áreas ( ensino de 1º grau).

Bernstein ( 1980) distingui os currículos de acordo com a relação que mantém entre si os conteúdos que os formam., destacando dois tipos clássicos de currículos:

Collection: neste os componentes são justapostos, com diferenciação clara entre eles. Pode ser exemplificado no ensino secundário ou universitário. Também chamado de mosaico, relega o domínio das últimas chaves do conhecimento às fases finais da aprendizagem das cadeiras especializadas, onde se percebe um redução do poder dos professores sobre o conteúdo que transmitem. Mantém as barreiras que guardam entre si os diferentes especialistas.

Integrado:os conteúdos aparecem relacionados uns com os outros de forma aberta. É observado na educação infantil, onde não existe um senso de grupo de especialistas como citado anteriormente. Aqui, o professor centra mais seu autoconhecimento

 

profissional em um período da escolaridade. Deixa mais espaço para o professor organizar seu conteúdo,à medida em que se requer outras lógicas, que não são as dos respectivos especialistas.

Uma forma que permita a integração entre a equipe de professores é através de projetos curriculares, onde, através de equipes com competências variadas sejam elaborados materiais com os quais os professores possam trabalhar de forma individual posteriormente. Este recurso auxilia a obter um currículo organizado com um código integrado

O código Organizativo

O currículo organizado em função das características do sistema escolar, correspondendo à regulação administrativa do currículo. Como exemplo: ordenação do currículo por meio de ciclos frente à ordenação dos cursos acadêmicos. O ciclo engloba vários cursos, permitindo uma organização do conteúdo com mais tempo, propicia ao professor uma margem maior de flexibilidade, de mais fácil aceitação ao ritmo de grupos heterogêneos e tornam periódicos o calendário de avaliação. Já a organização por níveis anuais compartimenta o tempo de aprendizagem e obriga a uma acomodação do ritmo de progresso.

Professores de curso anual frente a professores de ciclos têm menos oportunidades de se confrontarem com períodos evolutivos e educativos mais amplos para perceberem transformações.

O código da separação das funções

A organização do currículo leva muitas vezes à divisão de funções entre os professores e entre esses e outros profissionais.Desaparecem determinadas competências profissionais e distancia-se da função do plano do currículo, à medida em que deixam de exercer determinadas competências práticas e esquemas de racionalização, análises e propostas inerentes à prática.

Os códigos metodológicos

É o código mais evidente em qualquer expressão de currículo. A estrutura pedagógica do currículo ganha um valor relevante dentro da filosofia, do plano e dos métodos pedagógicos, à medida em que se entende que o ensino deve desenvolver sua função culturizadora.

Hoje, é ideia que o currículo seja um projeto educativo, isto é, uma seleção cultural moldada e organizada de acordo com ideias, princípios e finalidades pedagógicas.

2 comentários:

  1. O texto é denso e o resumo também se apresenta denso e isso é um bom sinal. Poderia até ter inserido mais aspectos relacionados à Medicina. Foi tímida nisso ainda...Muito bom!

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  2. O texto me ajudou a formular as questões do meu interesse

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